Textos
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- Jardim Psicodélico
- Fora do Tempo
- O Artista
- Rambling On
- O cavalo ao horizonte
- Tratamento
- Dang
- Spin
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- Stillborn
- Power and Majesty
- Bloqueio
- Em busca do Planeta Caravana
- Rampage
- Caçarola de marmota
- Quando as vidas se enchem de fúria e fumaça
- Tempos difíceis em Chicago
- Earl
- Flaming Paris
- Observando as estrelas
- A cidade nuclear
- Peguei seu nariz!
- Inevitável
- The rain brings pain
A Cidade Nuclear
Não sei bem a razão, mas o domingo é o pior dia para se andar na cidade nuclear.
Eu caminho sozinho, e observo o céu - pós apocalíptico - que está lindo. O frio cortante completa a beleza das nuvens alaranjadas com fundo azul profundo. Me concentro em olhar para o céu, magnífico, porque sei bem que, se eu olhar para as ruas, acabará o encanto. Com as mãos enfiadas nos bolsos, aprecio, enquanto ainda posso, todo o esplendor que se encontra acima de mim. Mas logo a cidade nuclear consegue aplicar seu primeiro golpe em mim e me arrasta para longe da beleza; me faz encarar a realidade. Eu amo o céu. Num dialeto que eu conheço parcamente, um mutante arredondado, que caminha na minha direção, me pergunta se está tudo bem. Eu apenas concordo com a cabeça e continuo caminhando, desinteressado, tentando não demonstrar medo, ainda concentrado em olhar apenas para o infinito azul que me convida. Ele agressivamente me diz, então, que eu deveria dar-lhe dinheiro. Passo por ele e nada acontece. Mas agora caminho cabisbaixo. Escuto, ao longe, alguma máquina de outrora, que range, implorando por cuidados. Ela trabalha sob a monótona movimentação de um outro mutante. Existem mais mutantes do que homens na cidade nuclear. A máquina faz seu charmoso (irritante) nhéqui nhéqui nhéqui, até que eu esteja distante demais para ouví-la reclamar. O vento traz uma agradável sensação de frio, que aqui quase nunca se tem. O calor é sempre muito forte. No domingo o silêncio é inacreditável, em comparação aos outros dias. Mas depois de algum tempo, o vento traz também mais uma lufada de realidade e dessa vez não consigo me refugiar em céus ou máquinas. Eu amo as máquinas antigas. Com o vento vem um cheiro hediondo. Sacos vazios flutuam pelas ruas destruídas, restos de comida e vômito inundam uma esquina. Um grupo de criaturas está atirada no chão, fazendo ruídos estranhos e se abraçando, cabelos cheios de sujeira, rostos que indicam que eles morreram mas não partiram desta terra. Uma menina de três olhos agarra-se à sua mãe quando ambas passam pelo grupo assustador. As duas caminham amedrontadas, querendo desviar-se das criaturas. A menina vomita, enojada pela situação. Caminho mais rápido, quero chegar logo em casa, esconder-me de toda a imundície e tristeza dessa cidade asquerosa. No caminho, cruzo com mais e mais provas de que o mundo deveria ter acabado. Cotonetes com sangue atirados ao solo. Um menino com lábios roxos passa por mim em sua bicicleta. Em sua cabeça, apenas alguns tufos de cabelo. Ao longe, avisto um homem com três pernas mancoletando ladeira acima, e outro com apenas uma, se arrastando para baixo. Eles se saúdam com um leve aceno de suas cabeças. Viro a esquina. Uma prostituta (são quatro da tarde, mas na cidade nuclear, sempre é noite) caminha sorrindo. Vem em minha direção. Ela é quase atraente. Deve ter alguns clientes, se tiver o bom senso de cobrar barato. Seu corpo é bonito, mas sua pele é escura e suja demais, e ela tem duas cabeças(Uma normal e uma outra acima dessa, por demais peluda e cheia de protuberâncias que me causam repulsa depois de um longo escrutínio...). Estou quase chegando em casa. Viro mais uma esquina. Outro mutante caminha lentamente à minha frente, devorando um pedaço de pão. Passo por ele, evitando prestar atenção em meu olfato. Chego à porta da minha casa. Na frente dela, tem um homem sujo, vestido com sacos de lixo pretos. Ele olha pra mim com uma cara que diz, rudemente, "O que você quer na minha casa?"
Ignoro tudo isso e entro em casa. A escuridão me recebe como uma mãe que abraça seu filho que acaba de retornar após meses de viagem. Vou até a garrafa da mais forte bebida que tenho e termino com os últimos goles que ali se encontravam. Vomito tudo alguns instantes depois. Só assim consigo dormir. Odeio os domingos na cidade nuclear. O pior é que nem lembro de uma guerra atômica que tenha feito tudo isso. Odeio os domingos na cidade nuclear.