Textos

Um dia

Já há alguns dias eu queria escrever algo, mas não conseguia começar. Uma vez li em algum lugar que quem escreve não vive, quem vive a vida não tem tempo de escrever. Mas acho uma baboseira. A grande verdade é que viver a vida mesmo é uma coisa que toma tempo. Depois de viver, a gente precisa de uma pausa, onde apenas existimos, sem viver muito; nesse existir, podemos inserir o escrever.

Mas pra escrever, precisamos viver algo sobre o qual escreveremos, acho. Nem que sejam pequenas coisas. E hoje foi um dia com vários pequenos acontecimentos, alguns bizarros, outros bonitos, outros completamente confusos. Então agora que estou só existindo às 3 da manhã nesse outono holandês, decidi escrever meu dia.

Acordei um pouco mais tarde do que costumo acordar; a noite anterior tinha sido longa e cheia de música. Estava cansado, mesmo levantando-me ao meio dia. Comi bacon, ovos e um tomate com molho de mostarda. Fui ao escritório.

Na empresa na qual trabalho, a quarta feira é um dia morto; quase ninguém no escritório. Eu cheguei às 13.20, e saí às 16.20. Vou ao escritório só porque eu gosto de mudar de ambiente; me sinto em um mundo paralelo. A verdade é que poderia trabalhar de casa (inclusive voltei cedo pra casa para continuar trabalhando...), mas o passeio de bicicleta, o capuccino do escritório e o desfile de holandesas em um ambiente corporativo moderno-casual fazem o dia mais interessante.

Voltei pra casa, sentei ao computador e continuei trabalhando. O plano para a noite era encontrá-la; a liutaia.
Uma alemã que vive de fazer violinos. Em um bar ao qual nunca fui; Estocolmo.
Marcamos para as 20.15.
Às 19, ele me telefona.
Ele estuda Neurociência Cognitiva.
Mando uma mensagem a ela; tenho que ir a Amsterdam, teremos que adiar essa ida ao bar. Visto meu sobretudo de lona e as luvas de couro; a coisa é séria.

Às 20 nos encontramos em Amsterdam, na estação Sul. Conferimos o mapa e fomos tomar o bonde que nos levaria a onde tínhamos que ir. Me contou de como seu dia tinha sido horrendo, bem como as últimas semanas. Problemas no trabalho, ainda não tinha encontrado uma casa nova, não estava mais com a moça com quem estava da última vez que tinhamos nos encontrado.
Ele está trabalhando em um projeto que tem como objetivo enviar determinados sons e frequências que alterem a quantidade de ondas Alfa em um organismo, para induzir ou retardar os efeitos do sono; algo como um sonífero-energético digital, me explicou.

Subindo no mesmo bonde que nós, vi uma senhora com cara de perdida entrar pelos fundos, provavelmente por engano. Segui seus passos e entrei pela porta de trás, o que não é permitido. Ela passou seu cartão de transporte no sensor que fez Blip e abriu as portinhas. Eu segurei, ele passou, nós sentamos. Ele virou-se, olhou para o guardinha que fica numa cabine dentro do bonde, virou-se novamente e me disse:
- Pronto, pegaram a gente. Ele nos viu!
- Não se preocupe, ele não virá aqui nos perturbar.
- Mas ele está aqui pra isso! É o trabalho dele!
Eu não respondi. Mas acho mesmo que uma das muitas razões pelas quais ele não nos perturbou é exatamente porque esse é o trabalho dele.

Ainda no bonde, ele me passou a câmera e me explicou como filmar.
Quando chegávamos ao edifício em questão, ele me disse:
- Não tenho a chave do portão, somente do apartamento. 2 cópias. Você me filma abrindo a porta, certifique-se de que seja visível! No portão, teremos que esperar alguém que entra ou sai. Esconde a câmera em algum lugar do teu casaco, ou nessa tua bolsa.
Escondi, esperei.
Ofereci um cigarro a ele, mas ele disse que não, queria estar atento e concentrado, o cigarro ficava pra depois.

Uma senhora com um cachorro nos avistou enquanto saía do prédio, e fez cara de desconfiada. Abriu o portão, deixou o cão passar e estava fechando o portão atrás de si. Ele segurou, agradeceu e entrou. Eu o segui, acenando com a cabeça para a senhora, que me olhava com um pouco de medo. Atravessamos o pequeno jardim enquanto o portão se fechava atrás de nós e nos deparamos com uma outra porta, trancada, para a qual não tinhamos chave. Ele se virou, olhou para a senhora que ainda nos encarava, virou-se novamente para mim e disse:
- Pronto! Pegaram a gente! Ela tá de olho e nós não temos a chave!
Eu nem tive tempo de responder, e um grupo apareceu do outro lado da porta, abriu-a e nós passamos, deixando mais uns desconfiados pelo caminho. Atravessamos o edifício, que era formado por diversas alas (10A, 28H, etc), todo pintado de verde e branco, feio. Me lembrava aqueles filmes de detetive, com os corredores todos iguais, aquele monte de números e letras e portas e nós procurando a certa, subindo escadas, atravessando corredores, tudo no mesmo tom de verde e branco.

Finalmente, 30H. O nome certo. Ligo a câmera, respiro fundo. Ele faz questão de que eu me mova lateralmente, para filmá-lo na glória de abrir a porta. Insere a chave. Vira-se e diz:
- Filho da puta! Trocou a fechadura!
Eu tinha ido até Amsterdam só para filmar ele passando por aquela porta, e aparentemente não seria fácil. Após ele ter batido à porta gentilmente, sem resposta, sugeri:
- Quer que eu arrebente essa porta e nós entramos na marra?
Ele disse que não, não precisava disso agora, talvez outro dia. Fomos embora, fumar aquele cigarro e passear por Amsterdam.

Para fazer a viagem valer a pena, ele decidiu me levar à casa onde se hospedará nos próximos dias; lá, a nos esperar com vinho branco e tangerinas, três curadoras de uma galeria de arte; italiana, holandesa e tcheca.
Mas ele estava com fome, e não queria chegar lá com o estômago vazio. Quando ele disse isso, avistei um luminoso da Heineken à distância, e disse que poderíamos pedir algo de comer lá.

Entramos no bar, que era todo marrom, típico holandês, com uma clientela abundante para uma quarta-feira, música ruim e uma senhora que, como meu amigo comentou, deve ter sido muito bonita quando jovem. Ele pediu o misto quente e um suco de abacaxi, eu pedi uma coca-cola, tudo em um holandês bem sofrível. Espalhados pelas paredes do bar, um cartaz rosa que dizia
“Bingo Erótico
A festa mais
Legal
Gostosa
Uma palavra que eu nunca vou lembrar que começava com Z
Divertida
Sobre a Terra.”
No final de semana. Naquele momento não tinha nenhum bingo e nada era erótico no bar. Enquanto meu amigo comia seu sanduíche, um boxer gordo e extremamente vesgo olhava pro sanduíche e pra mim contemporaneamente.
Meu amigo notou que além de ser vesgo, o cão era excepcional porque podíamos ver o branco de seus olhos, tanto quanto os de um ser humano. Era realmente notável.

Saímos do bar e continuamos caminhando em direção à sua nova casa (ele tampouco a conhecia ainda. A casa. Já conhecíamos a curadora italiana). Obviamente, nos perdemos em algum lugar, provavelmente depois de termos parado em frente a uma vitrine pra tirar fotos de dois caixões; um com diamantes falsos cravejados, outro com tecido de zebrinha.

Quando tive a sensação de ter passado a rua em que devíamos ter virado, decidimos parar para pedir informações. Dois senhores em frente a um restaurante.
- Por favor, sabe me dizer onde fica a rua tal?
Eles trocaram um olhar breve, um aceno, e um deles disse:
-Esperem aqui, vou buscar o mapa de Amsterdam pra vocês!

Abriu a porta ao lado do bar e subiu escadas. Enquanto esperávamos, o outro senhor e meu amigo trocavam conselhos de viagem. “Fui a Florença recentemente”. “Quando eu era jovem, 60 anos atrás, as 3 melhores eram Beijing, Estocolmo e Budapeste.” Etc e tal.
Enquanto eles falavam, avistei uma loira altíssima, em uma jaqueta de couro e acessórios roxo-escuro caminhando na nossa direção. Ela me viu, sorriu e disse oi. Eu disse oi de volta, enquanto ela passava sorrindo. O outro senhor abriu a porta e saiu da casa, com o mapa em mãos.
- Pois bem, aqui estamos. O que vocês procuram é... vejamos... essa primeira rua, depois daquela placa branca, à esquerda, e então a primeira à direita.
- Ok, obrigado!
Achei estranho que pra dizer “primeira à esquerda, e então primeira à direita” o homem teve que entrar em casa e utilizar um mapa. Eu não me contive e ri quando, acenando uma última vez, ouvi um deles nos dizer, sorrindo: “Somos professores de geografia”.

Viramos à esquerda na Esfinge. À direita em seguida. Tocamos a campainha.

A noite com as curadoras foi agradável porém breve. Às 23 duas delas partiram, e eu decidi deixar meu amigo em seu novo lar temporário, que dividirá com a curadora italiana. Elas deixaram claro que não gostam de ser chamadas de críticas de arte, então eu acabei abusando da palavra curadora. Peço desculpas se ‘curadora’ é uma coisa que te irrita e você teve que ler tantas vezes.

Caminhei de lá até a estação Central de Amsterdam, acompanhando o rio. Passei por trás do museu Nemo, museu em forma de barco. Atrás, uma pequena doca com vários barcos, alguns antigos. Subi em alguns, ouvi sons que vinham de dentro, senti os odores das cozinhas e das cordas e do óleo e do couro e da madeira. Era uma noite bonita, e eu tinha visto esse monte de coisas confusas e interessantes. Caminhei tranquilo, atravessei pontes e tomei o trem de volta à casa.

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