Textos
O Cavalo ao horizonte
De vez em quando, desde que eu era menino pequeno, eu vejo, no horizonte (quando consigo ver o horizonte, é claro. É tão difícil ver o horizonte hoje em dia, morando em um grande centro urbano! Tendo isso em mente, pode-se concluir que não o vejo com tanta freqüência...), um cavalo. Eu sei que esse cavalo não é real, que ele é só um “produto da minha imaginação”, como dizem por aí. Ou melhor, ele é menos real que as coisas concretas da existência. Eu diria que esse cavalo que eu vejo é real como um triângulo, ou um “7”. Sem a mente humana para imaginar essas coisas, elas deixariam de existir, mas como estamos aqui imaginando triângulos e números, eles se tornam reais. Menos reais que vespas ou mostarda, mas reais, ainda assim. Portanto, mudo minha afirmação inicial. O tal do cavalo faz parte da “realidade B”.
Pensando bem, não posso afirmar isso. Nunca cheguei perto do cavalo pra conferir se ele é real ou não, muito menos em que tipo de realidade ele se encaixa. Mas imagino que ele não seja real como os cavalos reais (os das fazendas) por duas razões. Ele está sempre sozinho, no horizonte, olhando pra mim, e ele tem as cores do arco-íris.
Falando assim, parece que eu fico delirando um cavalinho lindo, de 7 cores, quase um representante da comunidade gay, a trotar no horizonte. Nada disso. A verdade é que esse cavalo é realmente intimidante, apesar de todas as cores. Ele quase não se move, e quando o faz, deixa um rastro colorido. Como se ele fosse feito de nuvens, deixa partículas no vento. Seu corpo tem as cores mais escuras; azul, violeta, verde. Os olhos são da cor laranja e de suas narinas saem jatos avermelhados, como o fogo do inferno. Eu dramatizo de forma barata, eu sei, mas essa é a sensação que tenho quando o vejo.
Inferno é uma palavra muito batida, e pra ser honesto, não sei como é o fogo do inferno. Deixem-me tentar de outra forma, que descreva melhor. A fumaça (sim, fumaça descreve melhor que jato, definitivamente) que sai de suas narinas apresenta um vermelho que parece rasgar a realidade, ferir a o universo - faz sangrar o mundo.
Como é que eu enxergo todos esses detalhes quando o vejo no horizonte? Sou míope, sempre perco o ônibus por não conseguir ler o letreiro antes que seja tarde demais! Nunca entendi como é possível que alguém como eu consiga enxergar um cavalo colorido no horizonte. Deve ser porque ele não está no horizonte, e sim na minha cabeça. Ou então ele realmente está lá no horizonte, mas por rasgar o universo, é mais visível que todo o universo .
Namorei algumas garotas nos últimos anos. Menos do que a maioria das pessoas, mas mais do que eu acho saudável. Hilda foi a primeira mulher com quem dividi um lar. Cozinhávamos, víamos filmes e fazíamos sexo, como os casais normais. Mas eu matei ela mais vezes do que tivemos refeições, ou vimos filmes. Com certeza muito mais vezes do que fizemos sexo.
Digo, matei ela na minha cabeça. Toda vez que ela me irritava, eu me calava, engolia minha raiva, e imaginava, com detalhes minuciosos, que eu a matava. Com uma picareta, com fogo, com lobos famintos, com meus punhos, com um vaso, sacos plásticos, veneno, mangueira, pedra, choque, gás, facão, etc. Moramos juntos por quase 1 ano, e a cada dia que passava, eu desejava mais e mais esmagar a cabeça de Hilda. Lembro-me que perto do fim já discutíamos todos os dias (ou melhor, ela gritava comigo enquanto eu me imaginava levantando, agarrando a mesa de vidro e jogando na cabeça dela). Ela decidiu que visitaria os pais no interior. Vez ou outra, ela ia ao interior visitar os pais. Eu não a acompanhava mais, os pais de Hilda eram uns idiotas. Ela foi, e não voltou quando disse que voltaria. Não voltou nunca mais. No começo eu fiquei aliviado, me sentindo livre e feliz. Mas depois de algumas semanas, ela exigiu que eu levasse suas coisas à casa de seus pais. Não gosto que exijam coisas de mim, mas estava feliz por me ver livre dela, então quis colocar um ponto final na história. Quando cheguei lá, ela estava com outro homem. Não fazia nem um mês que havia me deixado e já estava com outra pessoa. Ou estava antes de ter me deixado? Não importava, de qualquer forma, me enfureci. Voltei à minha casa, 3 horas de viagem, bufando. Eu podia ver o horizonte durante a viagem, e lá estava o cavalo. Imaginei o cavalo cuspindo aquele vermelho infernal na cara de Hilda, levando-a, carbonizada, ao mais cruel dos infernos.
Alguns dias depois, a mãe de Hilda me ligou dizendo que a filha sofrera um acidente horrível enquanto cavalgava. O cavalo da família enlouqueceu, saiu em disparada, jogou-a longe e correu em direção ao horizonte e nunca mais apareceu na fazenda. Na queda, Hilda morreu.
Quando eu contei essa história a Virginia, uma moça bonita que eu namorei uns anos depois, ela não deu muita atenção à parte importante da história. Ao invés disso, ficou chocada ao saber que eu desejava a morte das pessoas com quem dividia um lar. Sabe, é curioso isso nas mulheres. Você está lá contando como foi aquela passeata violenta da qual você fez parte, da cotovelada que o policial deu no seu nariz, como o chão tremia e o céu girava e, quando você conclui, elas ficam divagando sobre a roupa que você estava usando no dia, ou perguntando sobre quem era a piranha universitária que te convenceu a entrar no movimento estudantil.
Nós sempre tivemos um ótimo relacionamento, eu diria até que amava Virgínia. Amava no sentido original da palavra, aquele carinho sem explicação, aquela preocupação exagerada, o ciúmes e tudo mais. Mas nunca tivemos problemas grandes, nada fora do normal. Por isso mesmo fiquei surpreso com a reação dela à minha história. Disse que se eu não fosse à terapia, ela me deixaria. Que não é normal alguém desejar a morte de outra pessoa. Tentei explicar pra ela que era só com a Hilda, nunca desejei a morte de qualquer outra criatura, nem dos animaizinhos que eu queria comer num churrasco. Era só a Hilda! E isso piorou tudo. Ela queria saber o que é que a tal da Hilda tinha de tão especial que a fazia diferente de todas as outras coisas do mundo, e eu tentava explicar que devia ser a voz dela, ou a forma como ela erguia as sobrancelhas, algo que ela fazia despertava todo o ódio em mim.
De nada serviram minhas especulações e explicações; Virgínia me abandonou. Disse que não poderia viver com alguém como eu, que deseja a morte de outros e que parece não ter superado a morte da ex-namorada que me abandonou por outro homem. O que mais me ofendeu foi ela ter concluído que eu tinha sido deixado porque Hilda queria ficar com outro homem. Sim, por certo ela queria ficar com outro homem, mas não um outro homem específico; ela queria um outro homem qualquer. Não me abandonou porque encontrou alguém melhor, mas sim porque eu era insuportável e pestilento, e meu olhar a matava todos os dias. Como eu odiava a Hilda.
No fim, Virgínia foi-se também, fiquei sozinho outra vez. Nunca mais a vi, nem ouvi notícias suas. Mas eu continuava e continuo vendo o cavalo. E fico confuso, às vezes. Eu vejo o cavalo colorido desde que sou criança. A maioria das pessoas que conheci duraram pouco na minha vida. Conheci muita gente, me relacionei com muitas pessoas, mas todas eventualmente se vão. Acho isso normal, até saudável. As coisas na vida são realmente passageiras, surgem e desaparecem, coisas novas tomam os seus lugares. Mas não me parece certo. Essas coisas que passam por mim, por nós, que ficam apenas na memória, no passado, eram reais! Quão reais são agora? Essas pessoas e coisas mudaram, morreram, deixaram de ser o que eram! As únicas coisas que existem o tempo todo são as que não existem! Os números, os triângulos... o cavalo com as cores do arco-íris me observando do horizonte. Quando penso nisso me sinto menos real e passo a indagar-me se Virgínia não estava certa.
Nunca montei um cavalo, nem sequer subi numa motocicleta. Tampouco me lembro de ter visto um arco-íris, exclusive por fotos. Ultimamente tenho visto o cavalo menos e menos. Culpo a falta de horizonte, não o cavalo. Às vezes penso em tentar alcançá-lo. Ligar o carro e acelerar até estar perto o suficiente para tocá-lo. Eu desceria do meu carro e montaria. Gosto de imaginar que assim que subisse em suas costas ele rasgaria o universo, deixando uma marca avermelhada por onde quer que fôssemos. Iríamos aonde eu quisesse. Eu veria as estrelas, visitaria outras galáxias, viajaria no tempo. No fundo eu sei que é impossível, que não existe tal cavalo, e que isso não passa de uma peculiaridade minha, talvez algum trauma de infância. Talvez por isso mesmo eu nunca tenha tentado alcançá-lo.
Seria como correr atrás do vento, como tentar ver na escuridão.
Como escrever sem palavras...
Como falar em silêncio.
HTML Comment Box is loading comments...