Textos

Peguei seu nariz!

O metrô se movimenta com violência. O barulho é quase ensurdecedor. As pessoas que dividem o vagão comigo parecem zumbis. Olhando sempre para frente, sem expressão. Existem duas exceções. Eu ouço um choro, desesperado, acima do barulho do trem. Olho para minha direita, e, alguns bancos para lá, vejo uma mulher segurando um menino de no máximo três anos, que chora copiosamente. A mulher também parece um zumbi. O menino que chora tem cabelos amarelos bem claros e olhos de um azul penetrante, como só os bebês conseguem ter. Penso que em um par de anos o cabelo vai escurecer e talvez os olhos também. Seu rosto branco está cheio de lágrimas, e ninguém entende por quê. Nem se interessam. A mãe do menino o repreende, e o abraça com mais força, para demonstar que ela o protege, mas ele sabe que não há nada que a mãe possa fazer para ajudá-lo. No banco ao lado, está uma garota. Ela tem, eu acredito, por volta de seis anos. É gorda, horrivelmente gorda para quem tem seis anos. Seu agasalho azul escuro está coberto por migalhas de pão. O rosto parece ser o de mais um zumbi, mas eu e o menino loiro sabemos que não é assim. Ela é negra, e seus cabelos mal cuidados se espalham em todas as direções. Não se pode dizer que ela está sentada. Parece mais atirada no banco. Corcunda, e com seus lábios escuros e carnudos pendendo, como quem está prestes a babar, ela masca descontraidamente um chiclete. De vez em quando, sua língua faz um movimento que eu desconhecia, e sai da boca de uma forma bizarra, coberta com o chiclete. Esporadicamente, ela leva o cartão de crédito de seu pai (que está sentado num outro banco, sendo mais um zumbi) à boca, e divide o chiclete em dois, para logo em seguida voltar à rotina anterior. Depois de um tempo, ela enfia o dedo no nariz e parece entrar em êxtase. Delicia-se enquanto seu dedo indicador afunda-se na sujeira nasal. Sorri. E volta a mascar o chiclete. Alguns dos zumbis a olham e apenas balançam a cabeça em forma de repreensão. Mas ninguém dá muita atenção a ela. Mas eu e o menino loiro vemos o que ninguém mais parece ver. E ele chora por isso. Ele está apavorado, e com razão. Os olhos da garota são infernais. Estão cheios de fúria e desprezo, e parece que eles querem sair do corpo em que se encontram. É um par de olhos bem puxados num rosto negro. Isso não está certo, mas não é o pior. Eu e o menino sabemos que aqueles olhos realmente não deveriam estar ali. Ele teme de uma forma mais abstrata, ele sente mais do que eu, esse terror. Mas mesmo não sendo tão perceptivo quanto o garotinho, eu sei, no fundo eu sei, que aqueles olhos são de outra pessoa. E para mim, parece claro a quem eles pertencem. Parece óbvio. Não pode ser outra coisa. Aqueles olhos são de Gengis Khan. E eles olham para o menininho, às vezes, como se a culpa dessa ridícula situação em que eles se encontram (habitar esse patético corpo) fosse do pequenino. E eu vejo naqueles olhos apenas ódio. Observando-os, percebo, com certeza, que eles querem estuprar todas as mulheres da família do loirinho, e queimar a casa onde ele mora. Aqueles olhos querem jogar prata derretida nos ouvidos da mãe dele, e eles estão confiantes. Por alguns instantes, prendo a respiração e tenho certeza de que isso realmente vai acontecer. Daquele corpo mole e desprezível, vai saltar o grande imperador mongol, banhado em sangue, e o trem vai se transformar num massacre horrendo. A menina leva o cartão de crédito à boca mais uma vez, e repete o movimento de cortar o chiclete. Os olhos parecem querer deixar de existir. O trem pára. A mãe se levanta, e leva o menino, que chora apavorado, para fora do trem. Senta-se ao lado da menina um homem qualquer. Ele se aproxima da menina; parece não ver os olhos. Por que só eu vejo esses olhos?

Ele se aproxima da menina e dá um leve cutucão no nariz dela.

"Peguei seu nariz!", ele diz, enquanto brinca com a própria mão, sorrindo como um cavalo.

Retorno o olhar aos olhos da menina. E nesse momento, eu tenho certeza de que agora sim, os olhos vão reclamar seu destino e todos os passageiros desse vagão (inclusive eu mesmo) estamos prestes a morrer...

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