Textos

Tratamento

Eu quase matei um cara na porrada uma vez. Daí amarguei uns tempos no xilindró, e me obrigaram a ir fazer tratamento com um tal doutor. Daqueles que cuida da sua cabeça. Pra mim, médico que cuida da cabeça era aquele que te enfaixava depois de você levar um pau. Eu cansei de mandar gente pro hospital, pra cuidar da cabeça, mas era diferente. Aquele médico era um bundão, e eles achavam que eu detonar os outros na porrada era doença, e diziam que eu tinha ir lá me consultar, se não, voltava pra cadeia. Ele ficava fazendo perguntas, de perninhas cruzadas, dizendo hmmm aqui e ahhnnn ali. Anotava uma coisa ou outra, chupava bala de menta. O cara tinha cheiro de menta. E eu ficava lá falando, das vezes que eu tinha arrebentado a cara dos outros. Até que era legal, eu me esforçava pra lembrar todas as vezes, e ele anotava. Ficava imaginando se algum dia ele ia escrever um livro sobre mim. Eu tinha dado porrada em muita gente, talvez ele escrevesse. Naquele dia eu tinha decidido que ia conversar com ele sobre isso, já fazia vários meses que eu ia lá... Eu queria pelo menos ver o que é que ele tanto anotava. Quando cheguei lá o filho do doutor estava brincando num canto, com uma caixinha colorida. Cheguei dizendo oi, como vai, bonito dia. Ele disse sim sim, pode se sentar. Colocou a revista que estava lendo no cesto de vime e olhou pra mim. Daí eu perguntei.

- Doutor, o senhor vai escrever um livro sobre mim?

Ele segurou a risada, mas deu pra ver que ele queria rir. - Não, não. Por que você acha isso?

Ele sempre me perguntava coisas. Nunca respondia nada do que eu perguntava. Eu não ficava puto da vida, apesar de achar que eu deveria. A voz dele era baixinha. O filho dele fuçava na caixa todo contente. - Sabe, é que seria le...

Antes que eu pudesse terminar, o menino veio do lado dele, pôs a língua pra fora e fez um barulho de chiado, sssssss. Eu fiquei meio perdido, vendo aquele menino feio fazendo careta pra mim, com a lingua pra fora. O doutor perguntou que isso filho? O pentelho respondeu que era uma cobra. Virou e foi brincar de novo.

- Porra, teu filho precisa de você mais do que eu, cara.

- Hmmm. Ahnn. Por que você está dizendo isso?

Sempre perguntas. Anotou alguma coisa.

- Então, voltando ao assunto. Você fica aí anotando uma porrada de coisa sobre as porradas que eu distribuí por aí, fiquei pensando que talvez...

Olhei pra trás do doutor. O menino estava esticado no chão, se chacoalhando, derrubou a caixa de brinquedos, fazia sssss ssss ssss enquanto se arrastava, com os braços grudados no corpo. Uma cobra. Moleque idiota. Continuei.

- E talvez, se mesmo que você não escreva, eu tava pensando que você podia me dar essas anotações pra eu escrever.

- Hmmmn. Certo. Você tem vontade de escrever sobre as pessoas em quem bateu?

- Não, tenho vontade de ver o que é que você tanto escreve aí.

- Ahnnn.

Fiquei olhando pra ele, ele olhando pro caderninho de anotações. Eu ia dizer alguma coisa, mas o moleque chegou de novo, dessa vez agitando um chocalho. Fazia um barulho infernal.

- Eu sou uma cobra. Olha o meu chocalho.

Deu vontade de enfiar o chocalho no rabo dele, pra ele virar uma cobra mesmo, pirralho infernal. O doutor olhou pra ele e disse que cobras gostavam de ficar quietinhas na sombra, porque tinham sangue frio. O moleque foi deitar debaixo de uma mesa, balançando a porra do chocalho. Eu queria ensinar pra ele como as cobras trocam de pele. Babaquinha. Ficava me olhando e fazendo cara de cobra.

- Então, doutor. Posso ver isso aí?

- Infelizmente, não. São anotações que uso para analisar e depois prescrever algum remédio, se você precisar. Você nem entenderia.

O cara tava me chamando de burro. Mas ele falava baixinho, sempre sorrindo. Não conseguia ficar puto com ele. Mas era a primeira vez que ele respondia uma pergunta minha sem emendar outra pergunta dele. Algo estava errado.

- Então não faz diferença, deixa eu ver.

O moleque chegou junto de novo, e cuspiu no meu pé.

- Eu sou uma cobra. Esse é meu veneno.

Aquela voz fininha me dava vontade de quebrar as perninhas dele. Enquanto o doutor se preparava pra dizer algo, puxei o caderninho da mão dele. Olhei. Tinha um desenho de um robô botando fogo numa lixeira. Ele olhou assustado pra mim. Voei pra cima dele. Esmurrei ele duas, três vezes. O menino ficou agitando o chocalhinho dele. De repente, ele pulou nas minhas costas e me mordeu.

- Eu sou uma cobra! sssssssss

O doutor desmaiou com as porradas. Cobra é? Peguei o pirralho pelo cangote, dei um chute no cesto com as revistas. Enfiei o moleque lá dentro. Tive que dobrar ele, não cabia direito, o cesto não era tão grande, ele era meio gordinho. Ele tava choramingando, e eu disse praquele merdinha que se ele era uma cobra ele só ia sair do cesto quando alguém tocasse flauta do lado de fora. Tampei o cesto, peguei o caderninho e fui embora.

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