O Russo

Conheci esse russo quando visitava uma amiga austríaca. Ele repousava tranquilamente encostado naquele confortável sofá de couro, sofá no qual dormi várias noites do ano retrasado, quando um amigo alugava o quarto da austríaca, que viajava.

Após me despedir da austríaca, saí pela cidade com o russo. Ele me despertava uma curiosidade sem precedentes, e terminamos a noite em meu quarto, onde ele me contou parte importante da história de sua vida. Eu fiquei encantado com os extraordinários eventos que esse russo viveu, e abri totalmente as portas a esse visitante inesperado. Não só do meu quarto, não só da casa onde vivo, mas também as portas do meu coração e do meu intelecto. Sempre que me encontro com um personagem assim interessante, sinto que devo aprender com ele tanto quanto possível. Queria ouvir toda a sua história, mas uma noite não é suficiente para contar uma história de tal magnitude.
Quando conto isso tudo, sinto como se eu estivesse buscando razões para culpar a mim mesmo pelo ocorrido, mas não consigo rejeitar a idéia de que é culpa dele, não minha.
Apesar de eu ter recebido-o de braços abertos e convidado-o a estar em meu quarto (que é grande o suficiente para hospedar 2 ou 3 pessoas, como já ocorreu no passado), agora vejo que é uma característica sua, essa de tomar as coisas para si e sufocar seu anfitrião de sobremaneira. E não seria ele mesmo se não fosse assim. E eu não seria como sou se não tivesse essa característica de me tornar um aprendiz fervoroso de homens como ele.

De qualquer forma, o que me surpreende é encontrar minha moradia em tal estado, após apenas alguns dias de convivência com esse russo. Descrevo somente a mesa sobre a qual escrevo esse texto e o móvel ao lado dessa (a combinação das duas coisas é o que eu gosto de chamar de 'meu ambiente de trabalho') simplesmente porque me sinto oprimido pelo desejo de escrever (que é um dos prazeres que tenho negligenciado), e não tenho vontade ou tempo de escrever longamente. Devendo ser breve, escolhi a tal mesa, para limitar e enquadrar meu derrame de palavras.

A mesa tem 3 palmos de largura e um braço de profundidade. Sobre essa mesa, eu vejo 1 porta canetas vermelho repleto de canetas e estiletes, 5 rolos de fita adesiva, 1 grampeador, 1 caixa de grampos, 1 agenda (telefones e endereços), 1 laptop, 1 HD externo, 1 telefone celular, 2 blocos de notas, 2 canetas, 1 aparelho para acessar serviços bancários online, 1 tesoura, 1 mouse (em um mousepad), documentos do meu trabalho (manuais, passagens de trem, mapas), 1 jarra com água, 1 caneca, 1 luminária, 1 declaração de amor em papel vermelho, 1 gaita (em sua caixinha), 1 lata de coca cola vazia, 1 palheta, 1 isqueiro, 2 pacotes de sedas, 1 kg de chocolate em pó, 1 brownie (75% consumido), 1 pote de sorvete (vazio) e cerca de 20 porta-copos.

O móvel ao lado tem 1 palmo de largura e pouco mais de um braço de profundidade, e sobre ele, vejo 1 pequeno djembe, 1 afinador, 3 bolinhas coloridas, um saco de cenouras (vazio), 1 extensão de eletricidade, cerca de 8 porta copos, 1 caixa de papel cheia de moedas, 1 HD externo desmontado, 3 potes de sorvete (vazios), 1 pote de geléia (vazio), 1 pote de humus (vazio), 1 pote de cânhamo seco (30% consumido), 1 lata de cerveja (vazia), 1 bloco de manteiga (75% consumido), 1 microfone, 1 rolo de papel higiênico (99% consumido), 1 bilhete com informações importantes do trabalho, 1 protetor de ouvido, 1 pacote de tabaco (Camel), 1 cinzeiro repleto de cinzas sobre o qual repousa 1 baseado (8% consumido), 2 caixas de som, 2 facas e 1 copo com molho picante chinês (80% consumido).

É um tipo de espaço que só a influência desse russo poderia criar em minha existência, ou será que é simplesmente algo que sempre esteve em mim e perdeu qualquer vergonha de existir a partir do momento em que comecei a entender sua história?

Pois bem, devo confessar que meu desejo de escrever já foi saciado, e minha curiosidade me compele a saber o que o russo ainda tem a me contar.

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